Renda Básica Universal (RBU) – parte 2

Este tema abre um leque de discussões ricas e complexas, mostrando que a Renda Básica Universal é muito mais do que apenas “dar dinheiro às pessoas” — é uma ferramenta que poderia remodelar profundamente nossa economia, nossa sociedade e até mesmo nossos valores.

Com certeza. Vamos mergulhar no “calcanhar de Aquiles” do debate sobre a Renda Básica Universal: a sua viabilidade econômica. Este é o tema que gera as perguntas mais céticas e as respostas mais complexas.

Financiamento e viabilidade econômica

A questão fundamental é: “Como pagar por isso?”. A resposta não é única; proponentes da RBU defendem que a solução não viria de uma única fonte mágica, mas de uma combinação estratégica de várias abordagens.

1. Os modelos de financiamento: de onde viria o dinheiro?

Implementar uma RBU em escala nacional é um projeto caro. Não há como negar. No entanto, existem diversos modelos de financiamento propostos, cada um com suas próprias vantagens e desafios.

  • A) Reforma e Progressividade Tributária: Esta é a fonte mais citada. A ideia não é apenas arrecadar mais, mas arrecadar de forma mais justa.
    • Tributação de grandes fortunas e heranças: Aumentar os impostos sobre o patrimônio acumulado (acima de um determinado valor) e sobre heranças vultosas. A lógica é que uma pequena porcentagem sobre um patrimônio muito grande pode gerar uma receita significativa.
    • Impostos sobre Transações Financeiras (ITF): Aplicar uma taxa mínima (ex: 0,1%) sobre cada operação na bolsa de valores. Isso capturaria valor do setor financeiro de alta velocidade (onde robôs compram e vendem ações em milissegundos) e desincentivaria a especulação excessiva.
    • Tributação de “Males” (Impostos Pigouvianos): Criar ou aumentar impostos sobre atividades que geram custos para a sociedade.
      • Exemplo prático (carbono): O governo da Colúmbia Britânica, no Canadá, implementou um imposto sobre as emissões de carbono. Parte da receita arrecadada é devolvida aos cidadãos na forma de um “dividendo climático”. Isso cria um duplo benefício: desestimula a poluição e gera fundos que podem ser usados para uma RBU. O mesmo se aplicaria a impostos sobre plásticos de uso único, bebidas açucaradas, etc.
    • Impostos sobre gigantes da tecnologia: Taxar os lucros extraordinários de empresas como Google, Meta e Amazon, com o argumento de que elas lucram massivamente com um bem comum: os dados e a atenção da população. Vários países na Europa já estão implementando “impostos sobre serviços digitais”.
  • B) Fim de subsídios e reorganização de gastos: O argumento aqui é sobre eficiência. O Estado já gasta muito dinheiro, mas de forma ineficiente.
    • Corte de subsídios ineficientes: Governos em todo o mundo gastam bilhões em subsídios para setores específicos.
      • Exemplo prático (combustíveis fósseis): O FMI (Fundo Monetário Internacional) estima que subsídios para combustíveis fósseis (que mantêm a gasolina artificialmente barata, por exemplo) custam trilhões de dólares globalmente. Cortar esses subsídios liberaria fundos massivos e ainda ajudaria o meio ambiente.
    • Consolidação de programas sociais: A RBU poderia substituir uma série de programas sociais existentes (como auxílio-gás, seguro-desemprego, abonos diversos). Isso eliminaria a sobreposição de benefícios e reduziria drasticamente os custos com a burocracia necessária para verificar a elegibilidade de cada pessoa para cada programa. O dinheiro gasto com administração seria convertido em benefício direto.
  • C) Dividendos de bens comuns: Esta é uma das ideias mais elegantes. A riqueza gerada por recursos que pertencem a todos deve ser compartilhada por todos.
    • Exemplo prático (Alasca): Este é o exemplo mais famoso e duradouro. O Fundo Permanente do Alasca foi criado com a receita da exploração de petróleo do estado. O governo investe esse dinheiro e, anualmente, distribui os rendimentos (dividendos) para todos os residentes permanentes, incluindo crianças. Em 2024, por exemplo, cada pessoa recebeu $1.312. É, na prática, uma RBU parcial financiada por um recurso natural. O mesmo modelo poderia ser aplicado a outros recursos minerais, hídricos, etc.

2. Qual seria o real impacto sobre a inflação?

Esta é a segunda grande preocupação: se todos receberem mais dinheiro, os preços não vão simplesmente subir, anulando o benefício? A resposta é mais complexa do que um simples “sim” ou “não”.

  • O Argumento da “Inflação de Demanda”: Críticos temem que, com mais dinheiro no bolso, as pessoas correriam para comprar os mesmos produtos, e os comerciantes, percebendo o aumento da demanda, elevariam os preços. Isso é um risco real, especialmente para bens essenciais e inelásticos, como o aluguel.
  • Argumentos contrários e mitigadores:
    • Fonte do Financiamento Importa: Se a RBU for financiada por impostos sobre os mais ricos (item 1A), o efeito é mais uma redistribuição de poder de compra do que uma injeção de “dinheiro novo” na economia. O consumo dos mais ricos tende a cair um pouco, enquanto o dos mais pobres aumenta, com um efeito inflacionário líquido muito menor. O maior risco inflacionário vem de um financiamento via emissão de moeda.
    • Aumento da produção e concorrência: O aumento da demanda por produtos básicos (pão, leite, roupas) pode sinalizar para que pequenos e médios produtores invistam e aumentem sua produção. Além disso, com uma renda garantida, os consumidores podem pesquisar mais e escolher onde comprar, forçando a concorrência e segurando os preços.
    • Para onde o dinheiro realmente vai: Experimentos práticos e projetos piloto ao redor do mundo (como no Quênia e na Finlândia) mostram que as pessoas não usam o dinheiro apenas para consumo. Elas pagam dívidas (o que é deflacionário), poupam para emergências, investem na educação dos filhos ou abrem pequenos negócios.
      • Exemplo prático (Stockton, EUA): No experimento da cidade de Stockton, que deu $500 por mês a 125 residentes, observou-se que a maior parte do dinheiro foi gasta em necessidades básicas como comida (quase 40%), e não em bens de luxo. Apenas 1% foi gasto com álcool/tabaco.

3. RBU vs. Imposto de Renda Negativo (IRN): Qual a diferença?

Muitas vezes confundidos, são mecanismos diferentes com o mesmo objetivo de garantir uma renda mínima.

  • Renda Básica Universal (RBU): É universal e preventiva.
    • Como funciona: Todos os cidadãos, do bilionário ao desempregado, recebem um pagamento fixo (ex: R$ 1.200). O sistema tributário depois “corrige” isso. O bilionário recebe os R$ 1.200, mas paga muito mais em impostos, resultando em uma contribuição líquida para o sistema.
    • Vantagens: Zero estigma (todos recebem), custo administrativo baixíssimo (não precisa verificar a renda de ninguém) e alcança pessoas que podem estar fora do sistema formal.
  • Imposto de Renda Negativo (IRN): É focalizado e corretivo.
    • Como funciona: O governo estabelece uma linha de renda (ex: R$ 2.500 por mês). Quem ganha acima dessa linha, paga imposto de renda normal. Quem ganha abaixo, não apenas não paga imposto, como recebe do governo um valor para complementar sua renda até atingir um patamar mínimo.
    • Exemplo Prático (IRN):
      • Linha de isenção: R$ 2.500. Taxa do IRN: 50%.
      • Maria (sem renda): Deveria receber 50% de R$ 2.500 = R$ 1.250 do governo.
      • João (ganha R$ 1.500): Faltam R$ 1.000 para a linha. Ele recebe 50% dessa diferença, ou seja, R$ 500. Sua renda final é R$ 1.500 + R$ 500 = R$ 2.000.
    • Vantagens: É mais barato que a RBU, pois o pagamento bruto é menor (direcionado apenas aos que precisam), e pode ser mais palatável politicamente para quem defende a focalização.
CaracterísticaRenda Básica Universal (RBU)Imposto de Renda Negativo (IRN)
Quem recebe?Todos, sem exceção.Apenas quem está abaixo de uma linha de renda.
AdministraçãoMuito simples e barata.Mais complexa, exige declaração e verificação de renda.
Estigma socialNenhum. É um direito universal.Pode gerar estigma, pois é um benefício “para pobres”.
AlcanceGarante que ninguém “caia pelas frestas” do sistema.Pode deixar de fora trabalhadores informais que não declaram renda.
Custo brutoMuito alto (mas o custo líquido é menor após os impostos).Mais baixo.

Em resumo, a viabilidade econômica da RBU não é uma questão de “sim” ou “não”, mas de design e vontade política. Depende crucialmente da combinação de modelos de financiamento escolhidos, da forma como é implementada (RBU pura ou IRN) e do contexto econômico de cada país.

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